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Não vai ter Copa! Não vai ter eleição! Não vai ter Bienal!
25.06.2014

No dia 22 de março de 2014, a equipe curatorial da 31o Bienal de São Paulo, propôs um “encontro aberto” a respeito do tema “A cidade e seus espaços”, realizado no Sesc Pompeia. Estavam presentes praticamente todos os curadores (Pablo Lafuente, Charles Esche, Galit Eilat, Nuria Enguita Mayo, Benjamin Seroussi), assim como cerca de 30 pessoas que pareciam vir de histórias distintas de atuação (artistas, estudantes, arquitetos, professores, ativistas de movimentos sociais), mas todas de alguma forma conectadas com questões relativas ao “direito à cidade”. Nuria começou dizendo que o objetivo desses encontros é o de entender melhor a realidade social, política e cultural de distintos lugares do Brasil, já que a equipe curatorial é composta quase exclusivamente de estrangeiros - que, ao longo deste ano, estão morando em São Paulo.

Quais são os usos feitos dos espaços urbanos e como toma forma a vida nas cidades brasileiras (sendo tematizada, neste dia, a vida especificamente em São Paulo) é, portanto, um interesse constante dessa equipe. Não apenas no sentido de materializar esse interesse no interior do processo institucional/curatorial no qual estão envolvidos, mas também no sentido de experienciar profundamente o que aqui ocorre. E esse dia, que foi de difícil digestão, talvez tenha sido, justamente por isso, um bom exemplo do tipo de conflito que presenciamos.

Se o processo curatorial da 31a Bienal de São Paulo levou à definição de algumas linhas de força orientadoras (e não de um tema definido), tais como trabalho coletivo, pensamento comum, anonimato, experiência, agenciamento, transformação, imaginação e conflito, então, é preciso, diziam os curadores, não evitar conflitos! Essa foi uma primeira chave que me veio à cabeça estando lá e estando aqui, novamente, ao escrever esse registro. O conflito apareceu nesse dia. Houve tensão, como a velha e sempre renovada discussão entre estética e política, ou mesmo o desentendimento entre as perguntas e provocações que eram feitas de um lado para o outro da conversa, como se a conversa não ressoasse facilmente, ou fosse difícil travar uma conversa comum, uma construção viva de pensamento. E a dificuldade de “escuta vazia” (esvaziar-se para preencher-se do outro) é, de fato, um conflito primeiro que experienciamos sempre em São Paulo (eu, ao menos, sinto muito isso), especialmente quando universos distintos de atuação estão juntos, em uma mesma sala, tentando construir um entendimento coletivo.

Fazer uma Bienal com o tipo de intenção presente nesta curadoria, não parece ser nenhum um pouco fácil. Porque existe - e isso fica claro no próprio abrir-se para encontros totalmente imprevisíveis - um desejo real de levar a potência e a força do que está ocorrendo (como vida social, política e cultural na cidade, no país e no mundo) para a “exposição” – que pode, ou não, ganhar o estatuto de acontecimento. Por isso, diziam os curadores nesse dia que não lhes interessa ir muito além do prédio; ou seja, a questão não é criar espaços fora desse espaço expositivo específico, mas compreender como a cidade está ou pode estar ali presente. Se o espaço expositivo ou o museu, ou a Instituição cultural/artística fazem parte do urbano, como evidenciar o urbano que opera ali, que atravessa a Instituição? Como permitir que as tensões urbanas que, obviamente, sempre constituem tanto a Instituição, quanto cada exposição em si, venham, aconteçam, se estabeleçam como parte fundamental da discussão? Vimos essas tensões atravessarem, rasgando, muitas das últimas Bienais. Era a cidade sendo convocada. E vimos distintos modos de lidar com as tensões e cidades que ali se impunham, a maioria, na minha opinião, sufocando-as.

Não vai ter Copa! Não vai ter Bienal! Não vai ter eleição! Se trata disso, então? De refletir e agir diante dessa força, desses impasses, tornando visível, em última instância, que o espaço social não está dado, mas está em permanente negociação? De encontrar modos potentes de lidar com o imprevisível social que se impõe, deixando-o, de fato, acontecer, se desenvolver no interior da Instituição – ou seja, ter o cuidado de não fazer o movimento de provocar o fluxo, para depois sufocá-lo? Charles Esche perguntou, nesse sentido, sobre o que queríamos que acontecesse diante de tanta expectativa. Se remetia a tudo o que tem ocorrido em São Paulo e no Brasil desde o ano passado e ao clima de antecipação que temos vivido neste período: “Brasil palco mundial”, eventos que se relacionam com o âmbito político, social e cultural, tudo ao mesmo tempo e à sensação de que parece haver uma crença de que algo vai se mover, ou está se movendo. Mas, completando a pergunta, Charles colocou: será que tudo isso vai criar ou obliterar as possibilidades?

Eis a questão, ali colocada pelos curadores, a respeito do potencial de evidência que tem a Bienal: “O que precisa ser feito diante de tudo isso? O que vocês querem ver acontecer ali – movimentos sociais, artistas, ativistas, professores...?” Qual a relação que as ruas podem ter com a Bienal? Dito isso, foi a “vez do público”. Abaixo, algumas falas, que transcrevo a partir das minhas anotações, portanto, que transcrevo como elas chegaram a mim e como as pude ouvir. Um aviso: uma certa desconexão fez parte do encontro, mas talvez, no todo, seja possível, sim, vislumbrar linhas de sentido. Vejamos:

Público 1 (parecia mais ligado à arte) - Interessante a provocação, mas muito racionalizada, tudo isso não nos torna menos dadaístas, antropofágicos. Tudo isso que vocês dizem são, certamente, adensamentos de fluxos, mas não consigo imaginar formas, algo formatado que possa acontecer, ser levado das ruas para o evento.

Público 2 (integrante do Movimento Sem Teto do Sacomã/MSTS) - Os conflitos enfrentados pelo movimento de moradia é de muitos anos. A experiência de ocupação do CINE MARROCOS vem de 1992. Este era um espaço construído para ser um cinema, do qual a prefeitura se apropriou porque o proprietário não pagava impostos, mas nada acontecia ali. Então, 357 famílias, 1800 pessoas, ocuparam o lugar. Imaginem: pessoas de várias nacionalidades, inclusive artistas, um espaço incrível que era um cinema, enorme e desabitado. Nasceu uma comissão de cultura lá dentro, que tinha o objetivo de mudar as relações de convivência através da cultura. Nós estávamos lutando pela cultura. Porque na periferia tem crime, política, mas "não tem cultura".

Público 3 (jovem do Ocuparte que trabalha com o MSTS) – Entendemos que a arte é uma nova forma de aprender, mas que os espaços de arte são fechados, sem acesso. É difícil chegar neles, pelo custo do transporte, etc. Por isso, o que tem de cultura, a gente está buscando. Não sei o que vai acontecer, mas vamos colocar as pessoas para trabalhar juntas lá no Cine Marrocos, que é a primeira ocupação em São Paulo que será um espaço cultural, porque não adianta uma coisa sem a outra: moradia sem cultura, educação sem moradia.

Público 4 (estudante de comunicação, artista circense, artista de rua) – Eu tenho contato direto com o que acontece: trânsito, público da rua, loucura da cidade e tento entender como as ferramentas que possuo proporcionam cultura. Acredito que na megalomania da cidade, um grão de areia pode se transformar em algo maior. Quando começo a trabalhar na rua, isso leva a uma transformação daquele lugar. Não tenho pudor nenhum em ir para os faróis, mostro tudo o que sei e, em pouco tempo, desenvolvo uma “arte de impacto”. Eu sonho conseguir atuar abrindo rodas e subvertendo placas e símbolos hegemônicos, subvertendo símbolos que proíbem muitas coisas.

Público 5 (coordenadora do Centro Educativo e Cultural de Heliópolis) – Heliópolis é uma cidade, tem quase 1 milhão de habitantes. Existe ali uma espécie de interesse de ser a maior favela do Brasil, o que é algo a se pensar. De qualquer forma, o projeto no qual trabalho tem como objetivo transformar essa grande favela em um bairro educador. Existe sim, esse ano, uma certa expectativa no ar de que "o circo vai pegar fogo". Será um golpe ou uma transformação social? Não podemos perder a oportunidade de transformar tudo isso em questões estéticas. Em Heliópolis, temos o interesse de fazer uma reflexão a respeito da relação entre ético e estético, porque morar em um lugar que fazemos ser bonito, é uma discussão ética também. Me interessa, em relação à Bienal, ver os jovens freqüentarem a Bienal sem pudor, sem vergonha.

Galit Eilat (curadora) – Vou fazer uma provocação: vocês não estão fazendo um trabalho que deveria ser da gestão da cidade?

Públicos diversos – Mas o poder público não dá conta de fazer certas coisas, por ter outros interesses, são as iniciativas comunitárias, autônomas, alternativas e de resistência que estão dando conta de muitas dimensões da vida social nos últimos anos...

Pablo Lafuente (curador) – Neste sentido, os eventos [se remete à Bienal como evento], assim como o poder público, talvez não sejam promotores de mudança, mas podem facilitar a conexão entre as atividades de pequena escala com uma escala maior ou institucional.

Público 6 (Professora da UNESP) – Acredito que a arte deve estar ligada às questões políticas. A Bienal está há alguns anos tentando criar aberturas, para não ser apenas um edifício modernista, podendo se integrar à cidade. Seria importante, nesse sentido, pensar qual o seu lugar no nosso imaginário ou na produção de um certo imaginário e nas conexões que podem ser feitas entre centros e periferias, para não polarizarmos o pensamento, como se as questões potentes estivessem apenas em um dos dois lugares, ora em um, ora no outro. De qualquer forma, não sei até que ponto a Bienal tem feito isso, tem criado conexões com narrativas situadas e diversas, ajudando a organizá-las. Porque para mim a arte tem tudo a ver com isso, e a arte no Brasil tem tudo a ver, neste aspecto, com o desafio de pensar a questão patrimonial de uma perspectiva latino-americana, construindo uma compreensão a partir do sul sobre o que é patrimoniável. Patrimônio, por ora, é museu >>> morte >>> mausoléu. Será que não pode ser outras coisas? O que é patrimônio para nós?

Charles Esche (curador) - A questão para nós, enquanto equipe curatorial, não é sermos “guardas do portão” para controlar o que pode e deve entrar ou sair. Entendemos a Bienal como uma plataforma, como uma engrenagem. Faz mais sentido conectar coisas que já estão acontecendo, ou criar novas conexões, e pensar o que a arte pode fazer em relação a todas as questões que se impõem. Ou seja, quais são os mecanismos que a Bienal tem ou pode ter para se relacionar com a cidade? Como fazer com que um projeto que é, originalmente, de elite, seja um projeto de todos e para todos? E isso deve ser feito com o comprometimento e a colaboração de todos, senão não faz sentido nenhum.

Pablo Lafuente (curador) – Fico pensando, a respeito disso, nas descentralizações. Será que oferecer a Bienal como plataforma não reforça a centralidade? Talvez fosse interessante pensar se existem conexões possíveis que não passem ou não precisem passar pelo centro...

Público diversos – Sim, a comunicação entre as periferias já tem acontecido. Não sei até que ponto é tão forte cultural e artisticamente, quanto é a conexão pelo tráfico de drogas. Mas, de qualquer maneira, é fundamental pensar o que queremos fazer em relação à cidade. Pensar nessas “coisas que não existem”, como “espaços ainda não ocupados”. E lembrar que os artistas muitas vezes habitam, justamente, esses campos desconhecidos. Em relação a este imprevisível, esse desconhecido, e essa conexão disso com a descentralização, a Bienal se coloca muitas vezes de forma hierárquica e informativa, indo até a favela para “educar os professores”, sem necessariamente refletir sobre “quais mundos essa conexão pode fazer surgir, ou abrir”. Em relação a essas provocações que vocês estão fazendo, há escopo para segurar depois o que vem da sociedade? Porque outras vezes já foram feitas provocações, mas depois, “quando a coisa vem”, ocorrem diversos tipos de censura.

Eu (pensamento anotado neste momento da conversa) - É possível descolonizar (ou seja, que relações proibidas aconteçam) a partir do centro?

Charles Esche (curador) - Na arte, “criar algo que não existe” é uma questão genuína, porque é como criar uma existência. Essa é uma questão da arte. Precisamos possibilitar, permitir isso na Bienal. Na Bienal, não interessa estabelecer conversas vazias sobre como o mundo é horrível, deve haver uma possibilidade de ir além, de falar sobre essas coisas que não existem, e não apenas das que existem. Para mim, “imaginar coisas que não existem” é mais importante do que tentar impor uma mudança política, porque sem a possibilidade de imaginar, ficamos presos em ciclos consolidados e conhecidos, em representações fixas.

Público 2 (integrante do MSTS) - Vamos falar do concreto então: está tudo no centro. O que pode tudo isso significar para mim: a arte, ir à Bienal?

Público 7 (jovem estudante de arte e artista) – Exato. O que é “esse não existir”? Como promover transformação, ressignificação real de uma Instituição, dos artistas que estão lá, para um público que não é educado para isso? Como dialogar com um público que não é o de interesse? Porque existe uma egrégora institucional. Será que vamos conseguir criar “isso que não existe” nesse contexto?

Público 8 (curadora adjunta da X Bienal de Arquitetura) – Na X Bienal de Arquitetura procuramos modos de fazer e modos de usar na cidade. Acreditávamos que o potencial transformador estava em juntar as pessoas sem saber o que poderia acontecer, para pensar a respeito e agir em relação a questões concretas. Então tinha a questão da imprevisibilidade. O objetivo era dar visibilidade a certas questões, fazer um papel de ponte, no qual havia uma chamada aberta de projetos. Por exemplo, discutimos a questão da habitação em um museu de elite. Ali, as pessoas do movimento puderam contar as suas histórias - diziam que tinham, neste momento, saído das páginas policiais para entrar nas páginas de cultura. Penso que a periferia não precisa da Bienal, mas a Bienal precisa desses outros universos.

Eu (pensamento anotado neste momento da conversa) – Então, parece que juntando “aquilo que se impõe socialmente” com “aquilo que não existe”, surge a dimensão de um imprevisível, uma real abertura do “evento” para o “acontecimento”, da “obra”, para a enunciação e os processos de tradução e contra-tradução entre escalas e mundos distintos. Será que é isso?

Público 9 (artista e estudante) – Fico pensando que a Bienal tem que colaborar para a emancipação. E, para isso, é necessário pensar em muitas culturas, ou seja, pensar nessa provocação da Bienal acontecendo através e a partir de outras chancelas que não apenas o sistema da arte. Então, como pensar nesses processos de emancipação, a partir de outras perspectivas, que não somente a vigente, baseada em um certo “progressivismo Europeu”?

Público 10 (estudante) – Charles Esche falou que esta Bienal está sendo encarada pelos curadores como uma jornada. Parece que estamos falando de uma "Bienal perfeita". Mas será que é realmente possível falar com os curadores sem tanta mediação, sem tantos mediadores, sem ficarmos pensando no que achamos que eles querem ouvir?

Público 11 (artista) - A Bienal pensa que a arte colocada dentro de uma Instituição pode levar à transformação. Mas o brasileiro não acredita mais nas Instituições.

Nuria Enguita Mayo (curadora) – Nós também não acreditamos na Instituição, mas acreditamos na potência de transformação a partir da Instituição.

Charles Esche (curador) – O fato é que a bienal não pertence a nós, pertence a vocês, vocês precisam reivindicar essa responsabilidade, essa plataforma, o que estamos tentando fazer é chegar em um formato a partir das demandas.

Muitas questões podem ser colocadas a partir desta conversa. Porém, destacarei, para finalizar, a questão da dignidade. Ou seja, aquilo que se impõe no encontro/confronto com outrem será tratado com dignidade se “o circo pegar fogo?” (expressão que veio do público). Assim como nesse encontro foi convocado o potencial da roda, até que ponto as disputas e negociações que se estabeleceram nele e que se estabelecerem durante todo o processo de concepção, montagem e publicização da Bienal, será permitida uma fuga da representação? (Estou entendendo a disputa não apenas como algo pré-visível, mas também como algo invisível, micro-político, que pode, ou não, nos deslocar verdadeiramente). Se as pessoas ali presentes “foram para o centro”, colocando o seu corpo em risco – tanto públicos, quanto curadores – como permitir, da mesma forma, que o risco e a dimensão da negociação do espaço social se apresentem durante o evento? Melhor parar por aqui, desejando o imprevisível.

texto: Joana Zatz Mussi

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