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Coisas que sim, existem
09.05.2014

Para o dia 20 de fevereiro de 2014 foram convocados no Museu Reina Sofía de Madrid cerca de 60 agentes culturais: artistas, curadores, críticos e profissionais do mundo da arte, para conversar abertamente sobre o projeto da Bienal, como já havia sido realizado em outras cidades e se realizava paralelamente em Tel Aviv. Cerca de apenas metade dos convidados esteve presente à reunião, devido às complexidades na cidade durante a semana da feira ARCO, que levaram o número de convocados na sala a se reduzir paulatinamente. Sem dúvida o contexto da feira, que sempre tentou posicionar-se como uma plataforma de visibilidade mais que um espaço meramente de transação comercial, fez com que parte importante dos convocados não correspondessem tanto a agentes da cena local, mas sim internacionais: entre eles, Ana Longoni, Miguel López, Manuela Moscoso e Pablo León de la Barra, além de outros “locais” como Agustín Pérez Rubio, Ferrán Barrenblit ou Jesús Carrillo, anfitrião do museu.

A apresentação realizada por Pablo Lafuente e Nuria Enguita começou com uma série de perguntas base: o que pode uma bienal? como pode atuar politicamente no presente? que expectativas se pode ter dela, a partir de Madri? que agenciamentos pode gerar em um momento convulsivo no Brasil e em nível global? Este último elemento será fundamental já que, depois de convidada a equipe curatorial em abril de 2013, em junho a situação política do Brasil havia explodido; de maneira distinta, claro, a casos como o de Istambul. Neste cenário de questionamento era necessário então perguntar-se: que papel o "MoMA" do Brasil poderia ter diante tudo isso?

O lugar de origem da equipe curatorial convocada por Charles Esche será um ponto de partida para a reflexão: não por acaso foram contadas as ocasiões em que a Bienal teve uma cabeça – neste caso grupal e horizontal– não-brasileira, cujo paradigma foram as duas edições realizadas por Alfons Hug. Isto considerando que a equipe é formada por dois espanhóis, um inglês e dois israelenses. Neste sentido, a equipe tomou como referência O turista aprendiz (1977), livro póstumo de Mário de Andrade, um diário de viagens pela Amazônia e o nordeste brasileiro: uma aposta em escutar o contexto e não codificar teoricamente, com anterioridade e exterioridade, o que constitui o primeiro eixo da exposição.

Assim também surgiu a proposta complexa de “colocar” os acontecimentos políticos dentro do contexto expositivo. Neste sentido, a aposta foi em um modelo colaborativo entre agentes artísticos, não-artísticos e coletivos ou organizações, conformando-se a ideia de coletividade como um segundo eixo da mostra, enquanto possibilidade de pensamento e base comum entre os envolvidos nos cerca de 70 projetos. Para a equipe curatorial, estes projetos se aproximariam ao que acontece nas ruas, comunicando este processo. Neste ponto, Manuela Moscoso questionou sobre como estava ocorrendo o processo de seleção dessas comunidades participantes. A resposta foi que são organizações com as quais a Bienal já tem uma tradição de colaborações, as quais se tenta articular com algum artista. Neste sentido, acaba sendo inevitável colocar em questão as possibilidades reais de atuar no presente político sem articular-se com os novos agentes coletivos que foram ativados, de urgência contemporânea, para além das estruturas já dadas.

O evidente elemento processual proposto foi, coerentemente, apresentado como necessário ao longo do tempo em que a Bienal permanecerá ativa, tanto dentro da exposição como em relação às organizações que operam dentro e fora de São Paulo. Não por acaso, o título da Bienal, até agora “Como falar de coisas que não existem?”, poderá intercambiar, durante o processo, o verbo “falar” por conviver ou aprender; ou como lutar com coisas que não existem, aludindo a certo princípio transcendente de uma linguagem artística com capacidade para romper as travas do existente e articular o utópico. A complexidade e a ambigüidade do título, quer dizer, seu caráter problemático, tem a ver com o fato de que as coisas, na verdade, sim existem, e têm conseqüências reais em diferentes níveis: o contra-argumento curatorial propõe que o interesse reside em sublinhar a diversidade de modos de existência negadas pelo modelo social hegemônico da classe média consumista. Isso que não existe realmente existe, ainda que não se enuncie, apoiando-se em referenciais teóricos diversos, desde certas antropologias indigenistas na América Latina até filósofos europeus e latino-americanos. Os seguintes eixos da Bienal serão pensados em termos de transformação (turn), conflito e imaginação de formas diferentes de mundos.

Em termos metodológicos, o elemento axial tem sido a educação, enquanto política já consolidada na Bienal, cuja equipe educativa colabora na investigação curatorial desde o começo. Elemento este, a propósito, colocado em questão por Carrillo ante posições consensuais e apaziguadoras do giro pedagógico no âmbito cultural brasileiro, apresentando uma pergunta sumamente pertinente: como enfrentar o conflito contemporâneo sem que a arte e a cultura sejam apaziguadoras do mesmo? Como negociar situações de tensão quando a cultura é concebida como uma ferramenta de resolução de conflitos? Neste sentido, seria necessário perguntar-se também por outras possíveis ativações de processos sociais para além do modelo educativo.

Na perspectiva deste modelo, o contexto imediato também é considerado, portanto, como um elemento de interesse. Destacaram-se, por exemplo, os múltiplos públicos que a Bienal tem fora da cena artística paulista, além dos 300 mil adolescentes que orbitam nas imediações do pavilhão. Não por acaso acabam de produzir 40 mil cópias de um material educativo para adolescentes.

Em relação às duas situações antes mencionadas, a equipe curatorial entende que o citado giro pedagógico opera como uma forma de não enfrentar o fato de que 200 mil pessoas educadas derrocariam qualquer governo, razão pela qual o Estado preferiria investir em cultura para “educar em duas horas” uma população que não foi educada. Claramente, este argumento não considera as diversas mobilizações sociais em que a educação não-formal e cotidiana funciona para além de qualquer sistema educativo institucional, intervindo diretamente nas formas de habitar.

Em consonância com o projeto, Bill Kelly apontou a necessidade de pensar as bienais como plataformas de investigação projetadas a longo prazo. Nesta mesma linha, Pérez Rubio se perguntou pelos projetos ou estruturas que poderiam ser legados para o futuro, tanto para as comunidades quanto também como uma transformação e intervenção permanentes na Bienal. Neste sentido, Kelly destacou a diferença entre um modelo em que a educação serve aos interesses curatoriais e outro no qual a mediação cultural, em particular com comunidades imigrantes, é preeminente – um exemplo disso seria o Queens Museum de Nova York. A resposta da equipe curatorial voltou ao ponto contextual: na gestação das propostas para a Bienal, são as necessidades das comunidades que constituem a questão inicial, anterior às preocupações do artista, tentando gerar alianças com efeitos de longo prazo, mais além do tempo restrito da exposição.

Consequentemente, se trataria de uma bienal local, não orientada a um público internacional ou turista, sem dar conta do poder da Bienal, pelo menos no âmbito latino-americano. É um projeto que se preocupa tanto com o contexto paulista como o de outras localidades do país, a partir de um modelo de “jornada da Bienal” com workshops curatoriais. Para a equipe, isso geraria uma necessidade de pensar a própria história da Bienal em um ato que é possível ler como um recolhimento e um sair “fora de si” cauteloso.

Por outro lado, e na via da reflexão sobre a exposição propriamente dita promovida pela Afterall, a pergunta será proposta pelo edifício, sublinhando o problema do display para além de sua concepção como mero contâiner. No entanto, a cautela informativa praticada consistentemente pelos curadores durante a sessão não deu conta da configuração deste aparato central dentro da Bienal e de qualquer evento expositivo. Também não ficou explícita qual seria a dinâmica geopolítica na seleção dos artistas e não-artistas que colaboram. Com isso, o debate em geral, como se pôde ver, se tornou abstrato, afastado das condições materiais reais, de nomes e coletivos ou indivíduos envolvidos ou dos caminhos que foram tomando os projetos em curso: tratou-se, efetivamente, de coisas que não existem.

texto: Francisco Godoy Vega

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