todos Cursos e formações ENCONTROS ABERTOS Material Educativo Projetos Workshop
Sobre arte, ficções e estereótipos
08.04.2014

“Todo museu é uma ficção”. Li essa asserção recentemente em um texto de Marcelo Rezende1 apresentado na revista Contorno, um dos recentes projetos do Museu de Arte Moderna da Bahia. Fiquei refletindo sobre essa possível natureza ficcional da instituição museal, ao ser convidada a participar de um encontro realizado em Salvador (Bahia) com cinco curadores da 31ª Bienal Internacional de São Paulo.  Logo de início, foi apresentada à audiência, presente no encontro, a identidade visual da Bienal, um instigante desenho do artista indiano Prabhakar Pachpute, em que uma grande torre cilíndrica era carregada/movida por um grupo de pessoas, sendo a “força humana” seu centro de inflexão.  O desenho estava acompanhado da frase ”como falar de coisas que não existem”, tema do evento. Dessa maneira, estávamos todos em um local inventado (o museu), fruto de um ato coletivo, uma criação social, prestes a discutir e refletir sobre “coisas que não existiriam”...? Essa possibilidade me pareceu bastante estimulante, e aos poucos percebi que os curadores estavam muito mais interessados em ouvir a “plateia”, entender suas expectativas dentro de um determinado contexto cultural – no caso, baiano, nordestino, brasileiro – do que realizar uma palestra dentro dos moldes formais/tradicionais. Considerando essas premissas, quais seriam tais “coisas que não existem”?  No caso nordestino, especificamente soteropolitano, elas são inúmeras: não existe um mercado de arte, um circuito de galerias, tampouco veículos de crítica de arte... esses foram alguns elementos colocados pelo público presente no encontro, que também foi questionado, em certa altura, sobre a “identidade” brasileira, definida em certo momento como uma “grande experiência”, a partir das palavras do sociólogo Darcy Ribeiro.

É oportuno frisar que, concomitantemente à 31ª Bienal de São Paulo, ocorrerá em 2014 a 3ª Bienal da Bahia, cuja abertura está prevista para maio, pouco mais de quatro décadas após o dramático fechamento da 2ª Bienal pelas forças intolerantes da ditadura militar brasileira. Essas bienais, pouco conhecidas e ocorridas em Salvador nos anos 60, estão aos poucos sendo relembradas e rediscutidas em virtude da sua retomada e reedição, às vésperas, diga-se de passagem, de uma Copa do Mundo.  Pensando nas disparidades e semelhanças entre São Paulo e Salvador- duas grandes metrópoles brasileiras, lembrei-me de uma interessante definição da capital paulista:

Uma cidade-máquina, que maximiza a impessoalidade pela individualidade e sua grandeza pelo investimento corporativo de megaempreendimentos, especulação imobiliária, corredores culturais e turismo (...)2

Uma cidade de grandes dimensões e estruturas, Salvador não se distancia das definições acima. É a terceira maior capital brasileira, igualmente grandiosa em engarrafamentos e violência urbana. Porém, há um detalhe que diferencia fundamentalmente essas duas grandes metrópoles: o fato de Salvador estar inserida numa região – o Nordeste – que está submetido a um quadro conceitual, também uma criação social coletiva, inventado por um sistema de forças de poder que se sustentam há quase um século em determinadas práticas políticas, econômicas e culturais. Trata-se do Nordeste encarado como um espaço homogêneo, portador de uma unidade imagética e discursiva, imagem amplamente divulgada e propagada pelas mídias oficiais.  Uma imagem do Nordeste, e arrisco-me aqui a afirmar também da Bahia, foi historicamente construída perpassando por uma série de preconceitos, enunciados clichês e estereótipos3 que apagam as multiplicidades e pluralidades da região. O Nordeste brasileiro também é uma ficção.

Vanguarda nos anos 1960 e 1970 do século 20, o Etsedron4 foi um coletivo de artistas visuais que apresentou ao mundo uma visão particular e radical da realidade nordestina. Antes que conceitos como globalização entrassem em voga, o grupo já lidava com a dicotomia global-local, propondo interações que resultaram em imagens sociais pertinentes ao nosso contexto social, contrapondo-se às soluções estéticas importadas e desconectadas da realidade brasileira, que eram e são predominantes.5 Em tempos de contracultura, Cinema Novo e Tropicalismo, criticando de maneira veemente a Arte Pop, o grupo participou de três edições da Bienal Internacional de São Paulo, em 1973, 1975 e 1977.6 Fortemente marcado por vivências comunitárias, que dialogavam com os procedimentos da etnografia, o coletivo possuía uma formação multidisciplinar,7 trabalhando com cinema, literatura, dança, artes visuais, teatro e música.

Em suas ambientações, o grupo apresentava um Nordeste sofrido, seco, inscrito na natureza e em determinada geografia/topografia. Eram personagens/espantalhos geralmente construídos com fibras vegetais, tendo ao fundo ambientes compostos, por exemplo, por casas de taipa ou paisagens que remetiam a um contexto de natureza hostil. Curiosamente, o coletivo nunca teve sua obra exposta na Bahia. O cenário cultural local, de certa maneira conservador, não soube lidar com o experimentalismo do Etsedron, que se dissolveu em 1978-79 incinerando as peças remanescentes de seus trabalhos numa performance-ritual intitulada “A Morte do Mito”.

As proposições do grupo, anteriormente citadas, ao escancarar uma região nordestina miserável, trabalhando com materiais precários– em oposição às práticas artísticas em voga, calcadas em modelos europeus/norte-americanos – aproximam-se, entretanto, de um regionalismo exagerado. Apelam para um discurso imagético que, novamente, corre o risco de representar um Nordeste clichê, que gira em torno de uma identidade marcada apenas pela seca, a discriminação, a pobreza. Daí a urgência de novas visibilidades, livres de estereótipos, um dos desafios da cena artística contemporânea não apenas local, mas nacional, pois estamos falando da realidade brasileira no fim das contas.

O tema da 3ª Bienal da Bahia, proposto pela equipe curatorial,8 indaga: “É tudo Nordeste?”  De que maneira as questões anteriormente colocadas estarão presentes nesse evento? Como a Bienal da Bahia pretende propor ao público novas formas de sentir e conhecer a Bahia, o Nordeste, o Brasil, o mundo...? O que é o Nordeste? Qual a sua identidade?9 O que o particulariza e individualiza em tempos de globalização?


Uns mostram as crateras da lua, outros mostram o luar, nós mostramos o Etsedron, o avesso do Nordeste. Puro, ingênuo, analfabeto, místico e maltratado. Seus munzuás e tapetís – formas e texturas a serem usadas por quem bem quiser – e caxixi e urupembas  a vinte centavos cada um. Quantas horas de trabalho?10

Muitas são as questões...“falar de coisas que não existem” sugere que a arte seja entendida como um instrumento capaz de transcender o “aqui e agora”, a concretude da vida cotidiana, levando-nos a um deslocamento momentâneo de uma realidade que se apresenta, muitas vezes, opressora e sufocante. Refletir sobre o Nordeste brasileiro, entretanto, nos impele a encarar de frente tal realidade. Sem respostas prontas, gostaria, finalmente, de terminar este relato com as palavras de Moacir dos Anjos, que me parecem bastante elucidativas:

No início da década de 1970, Hélio Oiticica disse que o Brasil não existia, sugerindo, é provável, a dissolução de uma idéia hegemônica do país, a qual iria efetivamente ocorrer, ainda que de forma gradual e lenta, nas décadas seguintes. Talvez seja possível dizer que o Nordeste do Brasil, como espaço de limites simbólicos definidos, tampouco exista. Permanece, em todo caso, como repositório de símbolos, mitos, técnicas, imagens e procedimentos que o confirmam como um partícipe da diversa, complexa e impura herança cultural do mundo.11

texto: Ludmila Brito

_______________

Notas

1 Atual diretor do Museu de Arte Moderna da Bahia.

2 MESQUITA, André. Sobre a arte das pequenas coisas. In CAMPBELL, Brígida e TERÇA-NADA, Marcelo. Org. Intervalo, Respiro, Pequenos Deslocamentos. São Paulo: Radical Livros, 2011. P. 107.

3 Sobre esse assunto ver:  JUNIOR, Durval Muniz de Albuquerque. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. São Paulo: Cortez, 2012. 

4 “Etsedron” trata-se de um anagrama: a palavra “Nordeste” escrita ao contrário.

5 MARIANO, Walter. Etsedron: O avesso do Nordeste. Artigo apresentado no XXIV Colóquio do CBHA. Belo Horizonte, 2004. Disponível em: www.cbha.art.br

6 Segundo o pesquisador Walter Mariano, o Etsedron ganhou, em 1974, o Grande Prêmio da Bienal Nacional de São Paulo.

7 Seus integrantes eram numerosos e havia uma certa rotatividade em sua composição. Dentre eles podemos citar: Edison da Luz, Chico Diabo, Almandrade, Neném, Lygia Milton, Antoneto, Milton Sampaio, Luís Tourinho, Márcio Meirelles, Maria Eugenia Millet, Rita Matos, Djalma da Silva Luz, Carlos Sampaio,  Eduardo Cheade, Hamilton Luz, José Olavo de Assis, Claudia Wudmuller, Durval Benício da Luz, Célia Maria da Luz, Tiburcio Barreiros, Altamirando Luz, Carlos Alberto Parracho, Manuel Ribeiro Carneiro Vera Lúcia de Paula, Felipe Benício da Luz, Matilde Matos e Carlos Ramón Sanchez.

8 A equipe curatorial da 3ª Bienal da Bahia é composta por: Ayrson Heráclito, Marcelo Rezende, Ana Pato, Alejandra Muñoz, Fernando Oliva, Júlia Maia Rebouças, Márcio Harum e Orlando Maneshy. Para saber mais, acessar: www.bienaldabahia2014.com.br

9 JUNIOR, Durval Muniz de Albuquerque. Op Cit. p. 5

10 Etsedron, outubro de 1973. In MARIANO, Walter. Op Cit. p. 1

11 ANJOS, Moacir dos. Local/global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.p.69-70.

Referências

ANJOS, Moacir dos. Local/global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

JUNIOR, Durval Muniz de Albuquerque. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. São Paulo: Cortez, 2012. 

MESQUITA, André. Sobre a arte das pequenas coisas. In CAMPBELL, Brígida e TERÇA-NADA, Marcelo. Org. Intervalo, Respiro, Pequenos Deslocamentos. São Paulo: Radical Livros, 2011. p. 105-111.

MARIANO, Walter. Etsedron: O avesso do Nordeste. Artigo apresentado no XXIV Colóquio do CBHA. Belo Horizonte, 2004. Disponível em: www.cbha.art.br

Bienal da Bahia: www.bienaldabahia2014.com.br

Bienal de São Paulo: www.bienal.org.br



últimos posts
share on