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Um grau ao Sul
03.04.2014

A terra e o ar são quentes. A umidade é sufocante. Belém do Pará é uma cidade singular por seus aspectos pouco ordinários, embora seja inegável a exuberância do entorno, a floresta e o “rio-mar-porta-de-entrada”. Mas só entende este lugar quem vive aqui, ou se permite a entrega, e toma tacacá fervendo sob o sol das 3 da tarde, quem não abdica do açaí com camarão, ou com charque ou mesmo com feijão e arroz, do pato no tucupi e da maniçoba. São tantos elementos comuns, exóticos para muitos, que é quase difícil quantificar. Podem ser sorvidos mansamente, poeticamente por quem se desarma, mesmo se turista, por acaso ou de passagem, acreditando estar no Cairo.

Erra quem pensa que estamos envoltos em uma camada de bruma feita de mistério e a inspiração cai do céu como mangas. Viver aqui é um desafio. Distâncias enormes, insalubridade, comunicação lenta que parece movida a carvão, precariedades de toda ordem. Mas tudo acontece. Tudo se sabe, se faz, se canta em prosa, verso, imagens e sons.

Inicialmente Capitania do Gram Pará. Um longo caminho, e viveu-se o fausto da borracha, a ópera na floresta, a belle époque e uma Paris na América a vincular-nos ao resto do mundo e à história. Mário de Andrade se espanta com o porco-do-mato na correntinha... mas sabe que Belém foi feita para ele.1

Como entender o que se passa neste lugar em pouco tempo e poucas palavras? Foram estes os temas propostos no Encontro Aberto da 31ª Bienal, ocorrido em Belém na noite do último 19 de dezembro, no Instituto de Artes do Pará, capitaneado pelos curadores Pablo Lafuente, Galit Eilat e Benjamin Seroussi, curador associado. Com eles conversaram por mais de duas horas cerca de cinquenta pessoas entre artistas, pesquisadores, estudantes de arte, curadores, críticos, além de alguns curiosos.

Isolamento parece ser um conceito a se discutir, e a tentativa de rimar com distância é imediatamente debelada – estradas e rios são também portas de entrada, e nem se precisa ir tão longe temporalmente, quando se tem a nosso favor a memória recente de uma produção que fala por si. Ultrapassemos, pois, a primeira modernidade e os ciclos seguintes, para tratar da diversidade na contemporaneidade.

E diversidade é palavra em voga. Do norte para baixo muito se constrói alicerçado sobre esse conceito, mais que adjetivar uma situação, socialmente confessável, é o início do (re)conhecimento. A convivência histórica de tantas culturas, a posição geográfica privilegiada, a contradição natural, e está colocado o caldeirão sobre o fogo de uma apaixonada complexidade a forjar uma arte desvinculada dos apelos do mercado 2, pulsando antenada ao resto do mundo, num diálogo alargador da visão que se tem de si mesmo e do seu entorno.

A localização é um ponto de conexão e abertura para um mundo plural, a olhar-se e perceber-se imediatamente, a fazer circular tudo aqui e agora – antes, apenas o tempo de partida e chegada fazia a diferença. O próprio lugar é tema e cenário, sem contudo resvalar numa regionalização piegas, mesmo possuindo manifestações tão particulares de uma tradição popular rica em caracteres prenhes de símbolos comumente utilizados em refinadas ressignificações.

Discute-se o local e o universal na produção paraense, e em particular na produção de Belém, e o conflito naturalmente se instala entre tantas vozes, que não obstante, impõem-se para além de meros substantivos refazendo percursos e definindo as tantas identidades que habitam em um mesmo espaço-tempo. E identidade é outro foco, o qual exige uma imersão na cultura multiforme de origem autóctone e de além-mar, e que se constitui matéria bruta ainda por conhecer, lapidar, apurar. A cidade é um grande laboratório e após a chuva da tarde tudo é possível acontecer, e de portas sempre abertas, conhecida que é por sua hospitalidade, recebe influência dos quatro cantos – matéria-prima a se fundir com a experiência local, que contém ainda um cheiro peculiar em função da fotossíntese amazônica.

Daqui tudo pode partir para qualquer lugar, independente de outros costumes e idiomas – a arte se impõe com a sua própria linguagem, essência espiritual das coisas 3 e propõe novos caminhos a cada largada; debalde o desconhecimento do país sobre ele mesmo, a produção rompe fronteiras casuísticas e se projeta no espaço reafirmando conceitos agregados, num convite constante de troca e autoconhecimento, para um congraçamento espiralado, onde há sempre lugar para mais um.

E falando em essência há que se pontuar, sim, uma amazonicidade latente nos tantos projetos originados e desenvolvidos aqui, mesmo que um caráter universal o impregne dando-lhe aval para lançar-se à vida pública e além. Afinal, "o artista da Amazônia é depositário de uma herança cultural e de valores",4 como afirma Paulo Herkenhoff, e a região, como já se disse, é o palco perfeito para o desenvolvimento dos temas mais contemporâneos conquanto o artista se coloque como ator, receptor e/ou propositor, e mais precisamente a cidade de Belém, com sua arquitetura decadente, contribui com certo ar retrô às tantas performances que buscam a rua e transformam-na em museus a céu aberto.

Existe certa cumplicidade pairando no ar de Belém, tomando-nos feito neblina e indicando esquinas e logradouros convidativos ao passeio e ao deleite, transfigurando-se em páginas escritas e cantadas, retratadas sob camadas de tinta e químicos, em telas e espaços livres. São muitos os detalhes inspiradores que se projetam para fora da rotina e compõem um novo roteiro.

Em carta a Manuel Bandeira o viajante Mário de Andrade fala que se deixou conquistar por Belém, a ponto de ficar doendo no desejo 5 e não são raros os casos de forasteiros se fixarem por estas plagas assumindo outras identidades e costumes. É uma cidade curiosa, ultimamente violenta com seus próprios filhos, a alimentar estatísticas pouco promissoras em patamares nacionais, mas que resiste no que melhor faz – ser ela mesma!

texto: Maria Christina

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Notas

1 ANDRADE, Mario de. O turista aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, 1976.

2 MANESCHY, Orlando. "Selvagem e Contemporânea" in Amazônia a arte. Rio de Janeiro: Imago, 2010.

3 BENJAMIN, Walter. "Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem" In: Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2011.

4 Entrevista com Paulo Herkenhoff. Amazônia a arte. Rio de Janeiro: Imago, 2010.


5 Carta escrita por Mário de Andrade a Manuel Bandeira durante a histórica viagem à Amazônia, em 1927. Disponível no link.

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