No dia 30 de novembro de 2013, a Casa do Povo, no Bom Retiro, acolheu o terceiro encontro promovido pela curadoria da 31ª Bienal na cidade. Foi este espaço, onde a escola de vanguarda Scholem Aleichem se destacou por sua ousadia pedagógica, o escolhido para sediar um encontro sobre educação – tema fundamental para a equipe curatorial.
Como toda conversa começa com uma pergunta, lançou-se uma provocação ao grupo: em que medida as tradições pedagógicas radicais, como a de Paulo Freire, teriam influência no Brasil?
Os encontros abertos não são divulgados livremente, o que pode ser limitador. Fizeram falta professores e outros especialistas em educação (do ensino formal e do não formal), considerando o desejo de discutir a história da educação no país e a efetiva influência de Paulo Freire na educação das massas. Fizeram falta os educadores que se dedicam ao ensino da arte, seja em escolas ou instituições culturais, especialistas em mediação, arte-educadores, enfim: o grupo, embora potente, estava incompleto.
Fez-se um panorama geral, abrangente, da educação no Brasil, a qual é sabidamente maculada, cheia de lacunas e impeditivos. Os anos de ditadura militar não apenas silenciaram o país, como deixaram deficiências extremamente difíceis de erradicar. Resgatar a voz em um país calado durante tantos anos e transformar as consequências disso requer tempo e persistência. Há inúmeras iniciativas, sérias e vigorosas, no Brasil, como a Escola Amorim, em São Paulo, e a Escola Parque, na Bahia. Ainda isoladas, pouco a pouco conquistam espaço e se disseminam. Resta sempre no ar, contudo, a incerteza sobre o que acontece com os alunos que se beneficiam de uma forma de educação radical uma vez que, em algum momento, é muito provável que sejam reinseridos no sistema educacional e nessa sociedade que prima pela desigualdade. Certamente poderão se garantir em sua formação sólida, o que lhes possibilita enfrentar diversas dificuldades: conectar a produção de conhecimento crítico à produção de consequências críticas está no cerne das pedagogias radicais.1
Diálogo
A construção coletiva de sentido inerente a esses encontros dialógicos, sem urgência de respostas, conclusões ou saídas, pede escuta atenta e decidida. É um ouvir transformado, o qual pressupõe “intencionalidade, consciência e atividade”.2 Deixar-se ouvir, dar tempo e espaço para que o silêncio ganhe corpo e se faça palavra. Possibilitar às pessoas que reconheçam a importância de sua contribuição na construção de processos coletivos, fazer com que entendam a potência de sua voz. Os encontros me parecem um investimento genuíno em conhecer o que de mais frágil permeia a coletividade, construindo junto a seu público uma exposição que fale com eles. Segundo Ira Shor, em conversa com Paulo Freire, as tensões transformadoras surgem quando o assunto situa-se na subjetividade do interlocutor, a fim de que possa se distanciar dela e experimentar uma reflexão mais avançada. O diálogo busca caminhos para romper com os limites que cerceiam nossa subjetividade.3
É notável a preocupação do sistema da arte com a educação. A dimensão do investimento nos setores educativos de instituições de arte se destaca em relação a outros países do mundo. Todos esses esforços culminam na possibilidade de criar uma massa crítica? Ou o ideal de educação de massas de Paulo Freire faliu e é tudo populismo?
A relação dialógica a que se propõem algumas instituições, a qual se entende emancipatória, tem como base o diálogo definido por Paulo Freire como “o momento em que os seres humanos se encontram para refletir sobre sua realidade tal como a fazem e re-fazem”.4 Ainda assim, há pouco aprofundamento na pedagogia freiriana, teoria que dialoga diretamente com a realidade (e experiência) social brasileira. Sem dúvida a palavra diálogo esvaziou-se de sentido em muitas instâncias. Talvez, apenas de parte do sentido em outras. Para ser transformador, este implica responsabilidade, direcionamento, determinação, disciplina, intenção. Segundo Freire, a consciência crítica é aquela que reconhece que a realidade é mutável e considera a necessidade de porosidade à investigação, aquela intensamente inquieta, que se torna mais crítica quanto mais reconhece em sua quietude a inquietude.5
Exposições e instituições culturais, em sua história de deformação, são espaços potentes de transformação. Em muitas delas, os setores educativos se propõem a dar a voz e, por meio do diálogo, dar lugar a experiências que permitam uma aproximação mais estreita com a arte. É fundamental, no entanto, que se faça claro que não devem funcionar como um mecanismo compensatório para uma educação insuficiente, mas guardar-se como espaço que possibilita, promove e discute a experiência estética; onde se vê, se fala, se ouve arte, ao ser tocado por ela. Um lugar onde surge e se estabelece um novo léxico que se disseminará na formação de um pensamento crítico, provocado não apenas pelas obras em exibição, mas pela exposição em sua totalidade – o que sempre vai muito além dos muros institucionais – e pelos encontros que ali se dão. Como em qualquer relação, quanto mais íntima e estreita se torna, mais vocabulário e possibilidade de troca se cria.
As mostras ou espaços expositivos devem dar lugar ao desaprender, ao questionar-se e por em jogo preconcepções, abrindo lugar ao novo, ao que urge ser dito. Uma instituição que investe em sua relação com o público deve entendê-la como uma oportunidade de discutir aquilo que se sabe e o que não se sabe, a fim de poder atuar criticamente e transformar a realidade.6 O que, supõe-se, deveria acontecer em todas as instâncias envolvidas nessa relação, direta ou indiretamente, da equipe editorial à curadoria, do patrocinador e da presidência ao setor educativo, assim como a todos seus públicos. O sistema da arte em nenhuma instância pode ser impeditivo ao trabalho curatorial e educativo. Uma instituição permeável entende o desfazer-se constante como parte de sua formação e estabelecimento, atuando sempre à borda das estruturas adquiridas.
Bienal
A Bienal de São Paulo, com suas equipes permanentes desde 2010, deve exercitar esse desfazer-se a cada mostra, com mais ou menos dificuldades. Permanentes, mas necessariamente permeáveis a novos conceitos e perspectivas que se apresentam junto às curadorias que, desde então, mudam anualmente (não mais a cada dois anos, considerando as mostras intermediárias). A equipe permanente precisa se dispor ao re-aprender constante. A provisioriedade que habita a permanência não pode jamais ser esquecida, ensina Eduardo Viveiros de Castro. Acolher o novo exige dispor e indispor tudo o que já está no lugar. A experiência é consequente da combinação entre o que as coisas fazem conosco – ao modificar nossas ações, ampliando e aprofundando algumas, resistindo e investigando outras – e o que podemos fazer por elas ao produzir novas mudanças.7
Esse modificar de ações, que se alastra a toda abrangente atuação da Bienal, pede bem mais do que informação. Pensando em seu público, para além da tão temida informação inacessível, é necessário o embate com o que está lá, com aquilo que pode promover uma ruptura no sistema: esse momento de quebra de padrões. Deve-se pensar em como pode ser desfeito o que está quieto no lugar, entendendo a formação como de-formação. Pensar no espaço expositivo dando lugar ao desaprender, e em uma anti-pedagogia como possibilidade e potência de exposição sem perder de vista que, para desaprender, é necessário trabalhar na formação, e que cada um deve ser sujeito de sua ação e transformação. Informações e explicações roubam o lugar do trabalho no que diz respeito à experiência e transformação.8 Deve-se entender educação como troca de conhecimentos, experiências, descobertas, investigações; uma troca em que se permite dizer o que quer ser dito, numa relação dialógica e equilibrada.
Se dia-logar (dia – através, logos – fala) é chegar a um caminho por meio da fala, é levar algo a alguém, dar a ouvir, ver e, até mesmo, a falar; dar ao outro a possibilidade de dizer; educar, por sua vez, é levar de um lugar para outro, mais precisamente, levar para fora, possibilitar que o indivíduo saia de si e deixe o olhar divergir a outros lugares, outras coisas, outras pessoas. Sair de si por meio da palavra, conversando. Con-versar é falar junto, considerar, compartilhar a palavra. Mas, con-versar deve ter algo de transformação, uma vez que se entenda versar como verter, traduzir, se fazer entender. Levar de um lugar para outro também implica em transformação. Ninguém sai ileso de uma conversa. Não de uma conversa em que há encontro. Não se pensarmos na conversão da palavra em verso: poetizar.
texto: Dani Gutfreund
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Notas
1 GRAHAM, Janna. "Between a Pedagogical Turn and a Hard Place", in Curating and the Educational Turn, edited by O’Neill and Wilson. London, Open editions/De Appel, 2010, p. 127.
2 BAJOUR, Cecilia. "Ouvir nas entrelinhas", São Paulo, O pulo do gato., 2012, p. 19.
3 FREIRE, Paulo e Shor, Ira. Medo e ousadia. São Paulo:Paz e Terra, 2011, p. 178.
4 Idem, ibidem, p. 167.
5 FREIRE, Paulo. Educação e mudança. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 53.
6 Idem, ibidem, p. 168.
7 Dewey, John. "Democracy and Education", in Education , Documents of Contemporary Art, edited by Felicity Allen. Londres: Whitechapel Gallery, 2011, p. 31.
8 Esche, Charles & De Appel CP. "Stand I don’t", in Curating and the educational turn, edited by O’Neill and WilsonLondon, Open editions/De Appel, 2010, p. 300.