Um debate sobre educação e formação em/sobre/com arte foi o mote do quinto encontro aberto da 31a Bienal de São Paulo. Ao redor da Mesa-Y, inicialmente montada durante a última edição da Bienal de Arquitetura, na Casa do Povo (São Paulo), os curadores, críticos, mediadores, artistas e arquitetos presentes ao encontro discutiram os sentidos e modelos das ações em arte e educação no Brasil.
Ao evocar o pensamento de Paulo Freire em experiências que extrapolam o campo da pedagogia, o encontro foi norteado por questões como: De que maneira os pressupostos teóricos de Freire se fazem presentes nas práticas cotidianas de instituições como escolas e museus? É possível se pensar na efetividade de tais práticas em larga escala? Como a curadoria da 31a Bienal de São Paulo pode dialogar com esse legado, considerando a totalidade da exposição como uma experiência entremeada e constituída a partir de processos educativos?
Sob a perspectiva de trabalhos como os de Augusto Boal ou de Jacques Rancière e o conceito de educação emancipadora, o legado de Paulo Freire sugere um horizonte prático e teórico para se pensar interações com a arte nas quais o público é sujeito, e não somente espectador. Ao tomar Freire como um ponto de partida para se discutir os processos educativos construídos em bases críticas, pontuou-se no encontro a diferença entre a formação em arte e o encontro com a arte.
Se, por um lado, o pensamento de Paulo Freire tem sido internalizado por experiências contemporâneas no campo da educação formal – como a Escola Municipal Amorim Lima – ou mesmo pela arquitetura – como nos projetos levados a cabo pelos coletivos Usina e Peabiru –, por outro lado, o pouco aprofundamento em seu trabalho revela-se problemático. “O pensamento de Paulo Freire é mal apropriado, especialmente pelo mundo da arte, quando elimina completamente a questão de classe. Em algumas exposições, por exemplo, o que era a visita guiada torna-se visita dialogada. Isso ocorre, às vezes, em um diálogo esvaziado de referências importantes sobre a luta de classes e a construção de autonomia”, afirma Graziela Kunsch.
Entre visões partilhadas e dissonâncias na abordagem dessas questões, as mudanças ocorridas na educação formal, nos últimos 50 anos, contextualizaram historicamente a discussão. O esmagamento da grade curricular durante a ditadura militar no Brasil esteve entre os marcos históricos mencionados. No final dos anos 1960, disciplinas como Educação, Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política Brasileira (OSPB) foram incluídas nos currículos escolares, ao mesmo tempo em que se buscava suprimir saberes e experiências que favorecessem o pensamento crítico na educação formal.
Nesse período, sob a direção de Walter Zanini, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo afirmava-se como um espaço de resistência ao cerceamento exercido pela censura no Brasil. Foi também nessa instituição que Aracy Amaral e, em seguida, Ana Mae Barbosa puderam conceber, a partir dos anos 1980, novas propostas para as ações educativas ligadas à arte.
Ao sistematizar uma “proposta triangular” para a arte-educação – baseada na contextualização histórica, no fazer e na apreciação artística – o postulado de Ana Mae Barbosa se transformaria na base conceitual e metodológica de muitos dos programas educativos no Brasil, e especialmente, em São Paulo. Nas décadas seguintes, já consolidados pelo sistema da arte e suas instituições, os núcleos educativos passaram a receber um grande aporte de investimentos, favorecendo um giro de público e de patrocinadores às exposições. A partir dos anos 2000, quando a FDE (Fundação para o Desenvolvimento da Educação) passa a organizar a ida das escolas aos museus e centros culturais, tais aportes são ampliados.
Esse incremento de recursos nos setores educativos fez com que as demandas para o número de público se fizessem presentes, colocando em risco a proposta de uma formação efetiva e pública. “Esse processo de transformar os setores educativos em setores mercadológicos passa também pela mercantilização do ensino em todos os níveis”, lembrou Marcos Moraes.
Essa posição foi reiterada por Ana Paula Cohen ao marcar, em sua fala, a diferença entre o educativo vinculado a uma exposição, e a educação como um amplo processo de formação e acesso à pesquisa, cujos resultados não se podem aferir somente em números. Se grande parte dos investimentos dos patrocinadores voltam-se para apoios pontuais ligados a manifestações culturais sazonais, a formação a longo prazo ainda carece de recursos.
Em resposta a essa situação, Lisette Lagnado lembrou da sua experiência como curadora da 27a Bienal, mencionando as estratégias curatoriais adotadas para ir além das demandas oportunistas que, às vezes, norteiam as políticas de financiamento para o educativo. Para responder a um hiato entre a compreensão da arte contemporânea e o público, a curadoria da 27a optou pela criação de um contexto para a exibição dos trabalhos, construídos juntamente com o educativo. Segundo Lisette, “o método educativo surge de dentro do projeto curatorial, a partir do que ele vai ‘plantear’. É importante fazer exposições nas quais o educativo já esteja embutido no cerne da curadoria.”
A partir da 29a Bienal, o setor educativo torna-se perene na instituição. Mais experimental, ele passa a buscar uma proximidade com o público, apostando na formação de professores e na criação de projetos continuados com escolas e comunidades. Elaine Fontana, membro da equipe permanente, afirma que uma das suas marcas é privilegiar um método que escapa ao puro didatismo, e procura estar atento ao que pode acontecer no contato com a obra. Investe-se, portanto, em uma experiência estética para além do simples entendimento do que está por trás da representação ou do que uma obra significa.
Assim, ao priorizar a criação de contextos para se pensar e complexificar os atravessamentos propostos pelas obras, o foco do Educativo da Bienal não recai sobre uma formação curricular em estética e história da arte que busque sanar as lacunas da educação formal.
Nesse sentido, algumas das questões estruturantes da 31a Bienal reiteram essa postura. “Não se trata de permitir o acesso a uma informação que está escondida ou que não foi providenciada pelo sistema educacional, mas sim de entender o que pode ser mobilizado quando se está diante de um trabalho. Mobilizado também no sentido daquilo que pode ser destruído para se atingir uma certa anti-pedagogia, permitindo emergir algo fora do sistema pedagógico que pressupõe um professor e um aluno”, afirma o curador Charles Esche.
Ao observar que a formação do pensamento crítico na Bienal ainda depende muito das obras, Graziela Kunsch adensa essa perspectiva: “Um dos pensamentos hegemônicos que ainda temos que desconstruir é o de Ana Mae, cuja proposta de educativo é muito pautada pelas obras na exposição”.
Mas, como repensar o contexto de fruição das obras, tomando a arte como potência (des)estruturante? Como a arte se mistura à vida? Em que medida os saberes do público são solicitados a dialogar com os trabalhos? Ou ainda, de que forma o potencial anti-pedagógico da arte nos convoca à quebra de paradigmas sociais, políticos e culturais?
É possível que o entendimento dessas e outras questões levantadas durante o encontro tivesse sido ampliado pelo aporte de professores e educadores que não estão diretamente ligados ao sistema da arte. Em uma discussão voltada às contaminações entre educação e arte, a interlocução com profissionais que vivem o corpo a corpo da prática educacional em contextos diversos teria permitido aflorar visões potentes para se pensar uma curadoria estruturada a partir de diálogos abertos.
Não obstante, ao apontar caminhos para integração de contextos, gestos e apropriações do público à mostra, o encontro aberto na Casa do Povo encerrou agregando perspectivas para se entender a Bienal como uma experiência que se inicia com o deslocamento à exposição, passa pelo contato com as obras durante a sua visitação, e engloba não só o seu pavilhão, mas todo o entorno do Parque do Ibirapuera.
texto: Sabrina Moura