Bastante sintomático da singularidade do projeto curatorial da 31ª Bienal de São Paulo é o fato de que o “tema” da edição de 2014, “Como falar de coisas que não existem?”, só foi mencionado na conversa aberta com parte da equipe de curadores, abrigada no Largo das Artes (RJ) em 7 de junho, a partir de uma pergunta do público. Com a presença de Charles Esche, Galit Eliat e Benjamin Seroussi, o ponto de partida do diálogo não foi um tema, mas o método que vem organizando os processos que culminarão na ocupação do Pavilhão da Bienal a partir de setembro. Sendo ainda mais fiel ao encontro, trata-se de uma proposta metodológica que implica apropriar-se da institucionalidade da Bienal como ferramenta para desencadear processos coletivos, aparentemente irredutíveis às etapas de realização de uma bienal de arte.
Como falar de coisas que não existem?” não é, portanto, um a priori temático, funcionando mais como um gesto metodológico de fundo que, a partir das ferramentas apresentadas pelo trio de curadores, podemos intuir que conta com, ao menos, uma intenção: coletivizar a Bienal enquanto processo. De modo que o que parece estar sendo gestado é uma pioneira ultrapassagem, através de processos abertos à escuta dos diversos atores envolvidos da realização de uma grande exposição de arte, das clivagens que tradicionalmente inscrevem os projetos curatoriais como anteriores às ações educativas e posteriores às práticas artísticas. Deste modo, as dinâmicas que correntemente vinculam artistas e curadores expandem-se através de uma incorporação emancipadora do público em um processo que culmina, mas não se esgota, na exposição de arte.
A proposição de encarar a Bienal como ferramenta coloca uma série de questões. Dentre elas, interessa-nos primeiramente explorar a que se vincula a uma problemática histórica: como conciliar o legado histórico e institucional da Bienal com a proposta curatorial de aferir a temperatura do momento presente? A tensão que podemos situar entre este legado e os dias de hoje parece ser acolhida e potencializada por certas escolhas que, em uma primeira visada, podem soar contraditórias. Um aspecto marcante desta 31ª edição é sua circunscrição ao Prédio da Bienal. Embora itinerâncias possam vir a ocorrer posteriormente, não há a pretensão de ocupar outros espaços concomitantemente à exposição que tem início em setembro no pavilhão do Ibirapuera. Por outro lado, os processos de pesquisa, formação e diálogo que já estão em curso e dão forma ao projeto curatorial são marcados por uma itinerância, uma espécie de expedição que não se esgota no circuito Rio-São Paulo e das grandes galerias, mas que parte em busca de projetos que tomem parte na construção coletiva de um novo argumento.
Este argumento, que talvez encaminhe uma resposta à provocação desta Bienal, “Como falar de coisas que não existem?”, não foi plenamente formulado no encontro do Largo das Artes. Falou-se, antes, em uma constelação de questões que emergiram no workshop “Ferramentas para a organização cultural”, do qual participam 15 jovens curadores, críticos e agentes culturais. Tais questões vêm sendo exploradas pela equipe de curadores junto aos artistas, ao educativo e aos participantes destes encontros abertos que antecedem à Bienal. Conflito, coletividade, imaginação e transformação – tanto social quanto alquímica – são alguns dos conceitos que ajudarão a responder - ou que terão ajudado a formular - a pergunta-tema da 31ª Bienal.
Apesar de trazerem para esta conversa aberta o caráter absolutamente singular da experiência de cada indivíduo no contato/confronto com os projetos que serão apresentados na Bienal, as equipes curatorial e educativa não se esquivaram diante de uma questão que, ao assinalar uma clara tomada de posição, poderá ser bastante discutida pelos defensores radicais da autonomia da arte. A questão consiste em saber quais as condições de possibilidade para que ocorram experiências que sejam efetivamente transformadoras do público da Bienal e, por conseguinte, do mundo. Formular o exercício de uma influência transformadora como intencionalidade do projeto curatorial é tão arriscado quanto promissor. Por um lado, há os riscos de se laminar a singularidade de cada experiência, proveniente da multiplicidade de repertórios culturais, afetivos e políticos que é cara a cada indivíduo; ou de submeter a experiência estética do outro a um investimento didático que tenta controlar os processos de transformação de modo a assegurar que os resultados destes processos coincidam com as transformações pretendidas antes do embate com a alteridade do espectador. Mas, por outro lado, diante da atual configuração político-social, nacional e internacional, ao se esquivar à suposição de qualquer neutralidade no campo das artes e reformular, sob novas perspectivas, o problema da autonomia da arte, as promessas parecem suplantar os riscos.
O processo de investigação que articula as noções de coletividade, conflito, imaginação e transformação não poderia mesmo tomar tais noções como simples objetos de conhecimento (anteriores ao processo de investigação), uma vez que elas tomam corpo nas próprias práticas artísticas, curatoriais e educativas que desembocarão na Bienal. Não se trata, portanto, de traçar um mapa de como as quatro noções mencionadas vêm sendo representadas pela arte contemporânea. O que opera aqui não é a lógica da representação, que sempre guarda a armadilha de ser segunda e subordinada a uma realidade que lhe antecede e é exterior, mas os modos concretos de atuação destas noções nas práticas artísticas, as formas pelas quais elas se apresentam e configuram a vida contemporânea.
Se a crise da representação está filosoficamente formulada há séculos, parece que apenas muito recentemente começamos a experimentar esta crise em práticas políticas concretas e cotidianas que, em sua imagem mais bem acabada, apresenta a máxima “não me representa” como palavra de ordem. As manifestações que ganharam visibilidade e adesão popular em várias cidades do Brasil desde junho do ano passado apontam para a impossibilidade de redução da ação política democrática ao exercício do direito de voto, alicerce de nossa política representativa. Este diagnóstico coletivo de que a política feita a cada dois anos, nas urnas, não dá conta da realização plena de uma res pública, parece atravessar a questão em torno da qual esta Bienal se estrutura. A insuficiência das instituições democráticas existentes apresenta-se para nós sob a forma de um campo vasto, limpo e aberto, que pode ser encarado como puro vazio, a política desertificada, ou como solo fértil, adubado pelas instituições em decomposição, sobre o qual construir novas ferramentas (coisas que não existem - ainda) para o cultivo de novas formas da democracia.
Dizer qualquer coisa sobre o porvir da democracia requer cuidado. Simplesmente porque dizer algo implica sempre, ao mesmo tempo, silenciar outros tantos possíveis. Talvez, por isso, a questão do método tenha ganhado a relevância que pudemos observar nesta conversa aberta com parte da equipe da 31ª Bienal. Acredito que a isto soma-se o que Walter Benjamin, tomando emprestada uma frase de André Breton, atribuiu à arte como uma de suas mais importantes tarefas: a de, em momentos críticos da história, preparar a percepção dos sujeitos para o porvir ou, parafraseando Breton, refletir o futuro.
Desenvolvendo contemporaneamente o legado benjaminiano, o filólogo italiano Giorgio Agamben, em um já clássico ensaio intitulado “Elogio da profanação”, fornece uma imagem que também ajuda a compreender o gesto subjacente a esta Bienal de São Paulo. Em linhas gerais, o ensaio de Agamben desenvolve a ideia, formulada por Benjamin, de que o capitalismo opera segundo uma lógica religiosa, na medida em que generaliza para todos os âmbitos da vida social a separação entre sagrado e profano, que é fundadora das religiões. Segundo este argumento, o sagrado que, nas sociedades capitalistas ocidentais contemporâneas, confunde-se com a totalidade do mundo, é aquilo que foi retirado da esfera social do “uso”. Ou seja, a vida contemporânea, defende o filósofo italiano, é marcada por uma incapacidade de uso que é proporcional à construção, no seio das dinâmicas capitalistas, de um Improfanável.
É o museu que, segundo Agamben, torna a analogia entre capitalismo e religião evidente, na medida em que ocupa, hoje, o lugar do sacrifício que, outrora, esteve reservado ao Templo. Através de um processo de progressiva museificação do mundo, a impossibilidade de usar, habitar e experimentar espraia-se por cidades, práticas culturais e políticas e, claro, pela arte. Neste sentido, compreende-se o esforço de uma série de Bienais ao redor do mundo e da própria Bienal de São Paulo em edições anteriores de não se limitarem aos espaços tradicionalmente expositivos. Mas avançando pelas trilhas deixadas pelo filósofo que nos convoca a profanar, temos que este gesto, por ele descrito como “a tarefa política da geração que vem”, implica fazer novos usos, brincar com as separações entre o que se usa e aquilo que o capitalismo sacralizou. Acreditamos, baseados no método e no projeto expográfico de ocupação do Pavilhão1 apresentados na conversa aberta que desencadeou este breve relato, que a circunscrição da Bienal ao pavilhão no Parque no Ibirapuera é parte importante de um exercício profanatório que busca restituir ao uso o que o modernismo, no fim das contas e não sem uma certa ironia da história, sacralizou.
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Notas
1 O projeto expográfico da 31ª Bienal pode ser conferido no link