Imaginemos um “encontro aberto” entre habitantes de duas “cidades” que poderiam ser identificadas por Ítalo Calvino como aquelas que são marcadas simultaneamente por ciclos temporais e pela flecha do tempo. Em uma, parte da população permanece apenas cinco anos e cede lugar a outra, que será formada a partir dos mesmos princípios da anterior, mas em um ponto mais adiante da história. Em outra, para seguir cumprindo um mandato histórico uma vez atribuído de se apresentar sempre como o “estado da arte”, seus mandatários convidam experts para, a cada dois anos, dirigirem a sua reinvenção.
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Há na expressão “encontro aberto” uma complementação produtiva de sentidos. Encontro pressupõe, neste caso, o estar coletivo em um espaço comum (ato planejado), mas também o ato de se deparar ou chocar-se contra (atos fortuitos). Todo encontro abriga uma dialética entre programa e acontecimento.
Aberto, por sua vez, diz de uma condição física de não clausura, que estendemos como figura de linguagem a outras instâncias como, por exemplo, as do pensamento não limitado, do diálogo franco, e da ação e participação não cerceadas. Mas “em aberto” diz de situações em suspensão - talvez a possibilidade de síntese, de vislumbre do que virá – e que assim permanecem no ato de sua enunciação.
Tencionando entre vários destes sentidos, em São Carlos ocorreu mais um dos encontros abertos da 31ª Bienal de São Paulo. Invertendo as expectativas dirigidas à escuta das enunciações de sua edição atual, a enunciação do encontro - e por extensão da Bienal – é a da escuta. A Bienal como encontro (em) aberto.
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Foco irradiador desta “abertura” da Bienal, como apresenta seu coletivo de curadores, é o diagnóstico da falência do Modernismo e a necessidade de dar voz ao que está (ou sempre esteve) fora. Mas como a partir de uma das instituições mais representativas da modernidade no Brasil questionar as outras instâncias (artistas, práticas, público, circuito...) que lhe correspondem no sistema da arte tal como o conhecemos, tributário na sua origem de um capital-modernismo?
A afirmação provocativa desta falência - em meio a um cenário nacional ainda habitado por certa nostalgia – coloca-se como afirmação de outras potências, singularidades por vir, situações ainda não completamente assinaladas, emergências em puro processo de emergência. Neste estágio, a única tese que permanece (o resto são hipóteses) é a de que estamos em trânsito. Estágio ao mesmo tempo inquietante e prazeroso: estamos em movimento, mas para onde?
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Nesta esteira, a ação de “intervir” (que foi motor da modernidade nas artes, como na arquitetura), e as possibilidades que se abrem para ela, vêm sendo já há algum tempo redimensionadas e reconfiguradas. Como intervir senão a partir da consideração de um grau mínimo de diferença? Em contrapartida, seria possível estar em trânsito apenas fluindo (ou friccionando) entre as coisas do mundo, experienciando-as em seu estofo?
Diz-nos Giorgio Agamben que a contemporaneidade “é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela."1
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Pois, “intervir” vem gradativamente cedendo lugar ao “cartografar”, como o sinônimo de uma “fala” que dá lugar a “escutas”. Nesta condição de trânsito, para qualquer intervenção mínima que se vislumbre, cartografar muito é preciso. Tal como afirmou Suely Rolnik, a cartografia “é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem”2
Como conceber uma Bienal diante de um mundo em tensão, em que se apresentam disputas por reconfigurações de diversas ordens, (inter)subjetivas, urbanas, políticas, econômicas? Se a ação de curadoria tem sempre um horizonte de micro-intervenção no mundo a partir da arte, o que esta edição parece propor é antes de tudo a cartografia de mundos, feixes em movimento, e abrigá-los temporariamente no “espaço da arte”.
Diante de ações e efervescências que dela independem, a proposta parecer ser, então, a da “coextensão”: facilitar processos em andamento e provocar práticas colaborativas análogas - a Bienal quer participar. Coletivo, imaginação, transformação e conflito estão na pauta do dia, fora e dentro da Bienal.
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Diante já de um contexto avassalador de acontecimentos e de uma imensa rede global e descentrada de comunicações que captura os sujeitos individuais, Fredric Jameson há mais de vinte anos propunha a investigação por uma “estética do mapeamento cognitivo”: formas de representação “que permitissem outra vez a começar a entender nosso posicionamento como sujeitos individuais e coletivos e a recuperar a capacidade de agir e lutar que é atualmente neutralizada por nossa confusão tanto social quanto espacial”3
Está no horizonte desta noção de “mapeamento cognitivo” a interrogação da produção artística contemporânea. Como ressalta Maria Elisa Cevasco, Jameson “insiste que a forma artística acaba sempre por buscar figurar o desejo de uma experiência menos espúria, uma consciência antecipatória que busca expressar uma concepção diferente da que a ordem atual reprime.4
Reside nesta hipótese a possibilidade de, arguindo a arte, tomar distância e recobrar capacidade crítica. Mas, não estaríamos diante de uma livre troca? Enquanto se mantém a promessa de uma consciência antecipatória na arte, não está o mundo orientado para captar esta mesma consciência nos movimentos políticos e culturais dissidentes? Como realizar um mapeamento cognitivo do mundo a partir da arte, quando a Bienal está realizando um mapeamento cognitivo da arte a partir do mundo que avança?
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“Quem viaja sem saber o que esperar da cidade que encontrará ao final do caminho, pergunta-se como será o palácio real, a caserna, o moinho, o teatro, o bazar. Em cada cidade do império, os edifícios são diferentes e dispostos de maneiras diversas: mas, assim que o estrangeiro chega à cidade desconhecida e lança o olhar em meio às cúpulas de pagode e claraboias e celeiros, seguindo o traçado de canais hortos depósitos de lixo, logo distingue quais são os palácios dos príncipes, quais são os templos dos grandes sacerdotes, a taberna, a prisão, a zona. Assim – dizem alguns – confirma-se a hipótese de que cada pessoa tem em mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças, uma cidade sem figuras e sem forma, preenchida pelas cidades particulares.
Não é o que acontece em Zoé. Em todos os pontos da cidade, alternadamente, pode-se dormir, fabricar ferramentas, cozinhar, acumular moedas de ouro, despir-se, reinar, vender, consultar oráculos. Qualquer teto em forma de pirâmide pode abrigar tanto o lazareto dos leprosos quanto a terma das odaliscas. O viajante anda de um lado para o outro e enche-se de dúvidas: incapaz de distinguir os pontos da cidade, os pontos que ele conserva distintos na mente se confundem. Chega-se à seguinte conclusão: se a existência em todos os momentos é uma única, a cidade de Zoé é o lugar da existência indivisível. Mas então qual é o motivo da cidade? Qual é a linha que separa a parte de dentro da de fora, o estampido das rodas do uivo dos lobos?" 5
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Ao fim do “encontro aberto” entre habitantes das duas cidades das “diferenças em temporalidades cíclicas que avançam”, os da primeira foram continuar a pensar como constituir público e adensar memória diante da substituição constante de parte de sua população, e os da segunda foram continuar a pensar como se dará desta vez a reinvenção, juntando coisas que estão acontecendo. Ambos irão se revisitar em breve no território da segunda. Os habitantes da primeira irão ver os últimos acontecimentos que lá tomarão lugar, quem sabe se reconhecendo naquilo lhes é (in)comum.
texto: David Sperling
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Notas
2 ROLNIK, Suely (s/d). Cartografia ou de como pensar com o corpo vibrátil
3 JAMESON, Fredric. “The cultural logic of late capitalism” in: Postmodernism, or the cultural logic of late capitalism. Durham: Duke University Press, 1991, p.44.
4 CEVASCO, Maria Elisa (2008). O sentido da crítica cultural. Cult (São Paulo), v. 122, p. 54-59.
5 CALVINO, Ítalo (1990). As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras. pp. 34-35.